poète de service
Estados Desunidos
Epígrafe:
Os críticos literários, enciumados,
sempre quiseram, no fundo, ser
poetas; e os poetas sem talento,
por sua vez, críticos literários.
A poesia que persigo
vai buscar suas palavras
no inútil e no indigno;
cumpre sentidos vazios,
louva ofícios desumanos,
late com estados frios
desígios norte-americanos.
Cumpre uma insípida função,
como se o poder máximo,
de se fazer do mais chato
de todos os signos neocoloniais
( mais que chato, execrável;
mais que isso, capitalíssimo
que a todos, pútrido, governa,
mas com que todos, cúpidos, concordam )
e de já não grunhir que seja um mísero não
que venha a contestar os iesses que rosnam
( Se não, vejamos, «ladies and gentlemens»:
quem, no Varjão, teria convidado Kenny Horn
e lhe aberto, impávido, ao telefone, as pernas? )
A Poesia que proponho acode o humano
parodiando esse modelo que não nos serve,
de todo avesso ao nosso latino derrame
- bobo, mau, insípido, sem verve -
que, de tão longamento imposto,
impossível não se o copíe
imperdoável que se o erre,
iinominável que se o conserve
ou, tanto menos, esquecê-lo,
ou sequer arranhá-lo de leve,
fazer menção de dizê-lo,
gerir contra ele guerrilhas,
viver-se com ele em greve
iou patentear-se reconhecê-lo
tanto ou mais que não se diga.
A poesia que retrato,
por uma questão de status,
não usa matérias baratas,
é uma das suas filhas.
Ódios da Nicarágua,
humilhações do Afeganistão,
terrores de Bagdá,
tudo isso lhe repugna
e nada disso compila.
Imporga do país herético
«rocks» uníssonos, bombas «H»,
cumpre estados unidíssimos.
Não me permite dizer,
sobe a voz, quando falo,
sou apenas papel e mão,
sigo seu discurso ralo.
Não posso, a meu grado, intuir
emitir opiniões,
omitir ou acrescentar-lhe
nomes de pessoas vivas ou mortas,
redescobrir,
recodificar.
Tudo tem que ser como ela sempre quis
desde a Guerra da Secessão,
desde os tempos dos vetustos barões,
dos impérios lejanos,
tal e qual, mais que nunca, hoje quer:
bem triste nem contente,
mas ou histérico ou dormente
seu inaudito cabaré.
Contra ela não adianta protestar,
aliar-se-lhe,
fugir-lhe,
mas apenas saber que se a sabe
e continuar-se impotente.
Nada de perquirir das bombas
que ela deixou cair, descuidada,
sobre Hiroshima e Nagasaki:
telespecte tudo no seu televisor
com vantagens de cinismo e humor,
de preferência no seu canal «Bola de Cristal»
e fique mudo, «darling»!
A poesia que traduzo
e que, traduzida, reprovo
não é a que eu queria
( nem é Poesia, teria outro nome,
outro estado, outra cor,
outro cheiro, outra psicologia:
é o susto da mão, ao peso de só a casca
entrementes desaparece com o ovo;
rima com «people»,
não com «povo».
A Poesia que eu quero
não se cansou de palavras,
segue um curso objetivo,
não cria pernas nem sai do livro
e quer esse ovo roubado
a todo custo e prova,
bem que para isso seja preciso
cortar os pulsos
deitar e morrer;
restabelece seus «til»,
seus «inhos», seus «nh»,
lê-se, delícia.
Mas a tíbia poesia que executo
não quer saber de quem morreu
ou de quem, aos trancos, lhe sobrevive,
nen quer saber quem sou eu.
Quer escravos como eu,
sulamericanos plebeus
que registrem o que ela dita
com a máxima precisão,
ffidelidade infinita.
Agora que o mundo acabou
todo igual, sem uma fresta,
seria festa matá-la
com bala ou tiro na testa.
( A poesia que me rege
sussurra no meu ouvido
que o que o poeta escreve
não pode ser Poesia
- respeitosa, me adverte
quanto a «falhas indeléveis» -
e me atrevo a responder-lhe
que não só pode como deve,
que se largo eu meu poema a meio,
que outro poeta para ela o escreve?
Carlos Drummond de Andrade?
Gonçalves Dias? )
Nas logo retomo seu fio
mesmo se não o quisesse;
e mesmo se não o quero,
se prefiro ouvir no rádio as vozes do Brasil,
ela interfere, muda de estação,
tira o samba e põe um «rock»,
regrava-o para mil bis.
Não respeita a Gal.
Quebrou meus discos de boleros, a meretriz.
Faz pouco da Ângela Maria.
( E quem teria matado a Clara, o Gláuber, a Elis? )
A poesia que eu secretariava me fez greve
por uma breve mas profunda pausa,
arregaçou as mangas,
inchou como um sapo,
mas não disse nada,
nem moveu a máscara,
pérfida e disciplinada,
de una vileza inatingível,
comparável à santidade
e dando um murro na mesa
obrigou-me a este ditado:
«À poesia que traduzo,
à qual eu, poeta marginal, macambúzio
hei-me emprestado ressalvadamente
para fins de recíproco, tátito uso,
em nada lhe interessa os seres vivos
ou os que tenham estado vivos,
menos ainda os que morreram lutando
em lutas políticas ingentes,
de mortes profícuas, ativas,
mas, sim, os que lhe sobreviveram
sabe-se lá por que motivos
e, tais como o próprio poeta,
insistam em ficar pra semente
furando sua geral expectativa.»
«A mim e meu clã de profetas
- continuou, direta, taxativa -
de laivos militarescos,
indícios neonazistas,
só nos cumpre vasculhar
os monstros dos outros planetas,
as crateras da Lua,
os buracos pretos do Sol
os mares vermelhos de marte,
os anéis de Saturno
e tudo que for descartável,
e tudo que for escuso,
e tudo que for nefasto
e tudo que for soturto:
O FMI
o Oscar
a Onu
a Aids
e outros vírus do futuro.»
«Ou, se o poeta quiser
reler-se em nossos jornais,
veicular-se em nossa mídia,
recorra aos motivos frugais,
atenha-se a verdades tíbias:
poetize as xícaras, o bulo, a mesa;
com palavras esdrúxulas dos dicionários,
traduza su´alma esquálida e burguesa;
tente resgatar o poema de amor
que, por minha causa, há anos, emperra,
desonera em sua mente,
ou brinque, inopinado, com seus versos,
imagine a Poesia uma vaquinha marota,
mineira
que
vem
descendo
adverbialmente
a serra.»
« Estão aí todos os temas
- ajuntou em tom pastoso -
afora o que ora desenvolvo
com que meu sistema concorda
e que permitem as nossas cláusulas.»
« Se quer o poeta ser reconhecido em vida,
que não nos exceda em perfídia uma vírgula;
instigue, se quiser, mas dentro de curtas medidas;
evite as causas que sabe, por experiência, proibidas,
jamais se aventure no desconhecido
nem ouse puxar as tripas políticas,
nem se refira nunca, e sobretudo
e em nenhum sentido, a «povo».»
« Que essa foi sempre a única maldita palavra
dentre outras poucas iguais, malditas,
que jamais se deixou escrever fácil
e que entalou por séculos nossa periquita.»
« Povo dantes não racuava,
tinha natureza renhida
desequilibrava a mão,
convulsionava o braço,
caía do papel,
fugia do garfo.»
«Tinha um peso imponderável,
um peso de gelatina,
fosse um ovo sobre a mesa
ou fosse um trem na neblina...»
«Povo remoía ( urra, p-o-L-v-o! )
causava medo e fragor
toldava a água cristalina».
«Agora (puah!) já nem rói
o braço de um ditador;
povo hoje é exterminado
e povo já não extermina
e se nunca escreveu isso antes,
jamais o escreva de novo.»
«Vá vivendo a mísera vida
-continuou a poesia assassina -
desconfiado da própria percepção.»
«Suponhamos- ou é bem certo- que as coisas não sejam
nem tão negras conforme imagina, nem mais brandas,
nem piores ainda, mas que aspiramos mesmo à total
destruição - verdadeira, universal, desumana chacina -
das áfricas coloniais e américas latinas:
o que pode, em nossa Ordem, seu palpite pessoal,
as desamadas imagens das suas encarapinhadas rimas?»
«Prepare-se para morrer.»
«Não saia mais de casa.»
«Olhe e não veja».
«Veja e não entenda.»
«Se entender, nada fale
e, ao falar, nada diga:
esconda-se por atrás do chão,
rasteje sobre a barriga,
aceite de coração o nosso grande mal,
entregue as últimas armas
que uma Cuba só não faz verão
(em um mundo rendido e igual,
de que vale um poeta anárquico?) «
«Filie-se a nossa indústria de poesia,
nosso chiclete poético é implacável,
gruda nos dentes da dor,
redime qualquer somália,
imobilizou o Iraque,
engoliu El Salvador.»
«Como oferta, esta semana,
essas imagens de Ruanda
e, como ponto de cerzir,
outras mais novas, do Haiti
que quase também nos mataram
(ah ah ah ah )
mas mataram foi de rir.»
«E não adianta o caríssimo poeta levantar a voz
- agradeça antes a Deus,se O tem, isto sim,
por tê-lo deixado a essa altura ao menos vivo -
seus «til», seus «inhos», seus «nh» nada podem contra nós,
o nosso computador não registra circunflexos, nem graves,
nem os tons interrogativos das suas linguagens,
nem as línguas latinas e seus poetas de livro.»
«Como não pudemos produzir mais e melhor
que as coisas que se declinam ainda aqui
- senão coca-cola e «jeans», Marilyn Monroe -
a nossa máquina se alimentará sempre, até o fim
à custa do sangue das «guantananeras»,
de tudo que foi blo, doce, concreto e redondo,
dos velhos filmes italianos,
de todo o cinema francês,
das vênus, das musas, das ninfas,
do estofo sedoso da Gina,
da tosca Marina Vlady...»
«Comemos a Rússia,
as rebeliões fracassadas,
as intentonas desmanteladas,
as vergonhas envergonhadas,
os anos sessenta,
os enredos de tudo,
a essência das pátrias,
os corpos e as músicas.»
«Recosturamos o mundo com o fio podre
daoutra metada da ideologia,
aplicamos enxertos, cirurgias,
criamos novos velhos países
e a gentalha sempre nos aplaude,
e reabrimos com balas suas cicatrizes.»
«Como vê o insigne poeta,
as coisas quedam afinal justas
nos seus lugares insertas
o tanto quanto se quis,
sem ferrenhos desafetos
nem perspectivas de lutas
-cada fruta noutro pé,
em cada galho outra fruta,
trocamos cajás e murtas
por serigüelas e putas,
os cajus das amoreiras
por outras frutas rasteiras
e, pelo péssimo, o pior
da sombra das bananeiras -
e por tudo, e a todo custo,
queremos é ser feliz,
queremos é ser feliz,
queremos é ser feliz! «
A poesia que discursava
interrompeu e calou-se
e um coro de bonecos
provindo sabe-se de onde
(do fundo negro do espaço
do espaço negro do fosso)
estribilhou, serelepe,
em um idioma horroroso:
«We want to be happy!
We want to be happy!
Uí uante tubí répe! «
A poesia, aclamada,
saudou a neogentalha
que constituía aquele povo,
lambeu o baton dos lábios,
soltou uma gargalhada
e, mui-triunfante-de-nada
continuou, impassível
o seu discurso assombroso:
« Desviamos os ouvidos,
eu e minha legião,
minha corja de bandidos,
o meu séquito inumerável
de espertalhões imprestáveis,
o meu exército imbatível
de genocidas, paspalhos,
de políticos celerados
e de filósofos «bundões»
(desviamos os ouvidos)
aos murmúrios e protestos,
aos clamores do outro lado,
aos ruídos proltários,
ao que ficou enterrado
e mal e mal é lembrado,
que nunca teve sentido
e não terá jamais razão.»
«E vai que estou cansada
(bah, como estou cansada!)
já esgotei meu discurso,
arrisquei todas as falas,
queimei o último cartucho,
gasteu a última bala
e nada mais tenho a dizer
além do que já foi dito.»
«A não ser, no bem ligeiro,
ao bardo Ademar Ribeiro,
poeta engajado, maldito,
que os primeiros lugares
no que tange à nossa Lírica
não lhe couberam de fato,
não chegam para o seu bico,
e as nossas melhores comendas
daremos aos seguintes vates:
aos pós-parnasianos,
aos semi-analfabetos,
aos repentistas do cordel,
aos profetas burocráticos
que emergiram dos papéis,
aos concretistas do asfalto
e assim aos poetas-estrela
da nossa mais alta estirpe
que não vieram ao certame
acometidos de gripes...»
«E - bah! - como estou cansada!
(baah, como estou cansada! )
e o poeta mais ainda,
tanto é que se calou
há bem três laudas atrás,
esfriou o seu afã,
aquietou sua pinimba.»
«Vá ver que se dispersou
pelas vielas da vida,
que se mudou de cidade,
que sucumbiu de estupor
em frente ao televisor,
à nossa mediocridade...»
«Ou, já desvalido e inerte,
aliou-se ao inimigo,
chafurda-se na internet?»
«Será que se suicidou
ou morreu de mal terrível,
de ódio, indignação,
atirou na cabeça,
deu um tiro no ouvido?»
E ao poeta em silêncio
a poesia foi falando
tomando as suas palavras,
julgando dela o seu tema,
e foi se tornando distante,
e foi se tornando difusa,
até que sobrou numa curva,
seu discurso entreverou-se,
o poeta fechou o poema
e a poesia acabou-se.
Ademar Ribeiro
Texto original puclicado em livro em 27 de março de 1999